Vereda de pólvora
O portão de ferro da cozinha estava fechado para os penetras do Casarão do Belvedere. O aroma de café recém-coado deixava claro que o proprietário do imóvel, o ator Paulo Goya, era o responsável pelo nosso desjejum e fazia questão de não dividir a preparação com ninguém. O que deixou uma das diretoras com os nervos mais aflorados do que de costume ao sentir as mãos atadas, tendo que esperar o restante da equipe chegar.
Na chuvosa manhã das gravações do Ao Vivo no Casarão, o histórico edifício na Rua Pedroso foi moldado para uma recepção calorosa aos convidados de Mossoró (RN). Nada de passarinhos cantando ou o aconchego de um sofá. Dessa vez, o cenário era apocalíptico, de modo que o tom do prédio tocasse na mesma intensidade da música suja do duo Red Boots.
Assim que se entrava no edifício de 1927, a bateria cuidadosamente posta sobre tapetes empoeirados no hall era o indício de que algo enérgico estava por vir. Ou como descrevem os próprios músicos: “um som cru e pesado”.
Ao redor do bumbo, do surdo e da caixa, o cenário lembrava o legado do regime stalinista, na antiga União Soviética, ou da Polônia pós-segunda guerra, em que os prédios decadentes exibiam apenas estruturas metálicas e os carros exalavam ferrugem. A ausência se faz presente. Ausência de natureza. Pelo menos da natureza viva, pois o que sobrevive é o que está morto.
Neste cenário de fim de mundo, o elemento principal é o metal. Escada de metal. Vasos de metal. Prateleiras de metal. Arames. Lustre de metal. Portão de metal. Regador de metal. Boiler de metal. Metais daqueles bem velhos que arrepiam a espinha ao arranhar um no outro. E cujo cheiro lembra sangue envelhecido.
O metal dá a ideia de vazio e deserto, indica o diretor de arte, o que remete ao ambiente de onde os músicos vêm. Quando a escada de ferro foi definida como pano de fundo da gravação, ele decidiu montar o cenário garimpando os demais objetos de metal apenas no próprio Belvedere. E para isso contou com uma ajuda essencial: “É incrível como o Paulo sabe tudo que existe no casarão”.
Composto de nitroglicerina
Após o café da manhã que mais parecia uma sessão espírita, com todos em pé ao redor da mesa, tentando se proteger da chuva que ainda pingava da tenda armada no quintal, chegou o momento de finalizar os preparativos para gravar a música que, de acordo com o Red Boots, pretende destruir o universo.
Tudo era feito ao mesmo tempo, transformando o hall em um completo caos: enquanto Mário colocava os últimos detalhes cenográficos, Ticão e Boris montavam a iluminação, Aécio passava todos os fios de captação do áudio com a ajuda da Juliana e do Rafael, e Cris, Giu e Yuri debatiam o posicionamento das quatro câmeras Canon e da GoPro.
Os metais continuavam expelindo um ardido som no hall, quando parte da equipe começou a gravar as entrevistas. A cadeira de espaldar alto foi a escolhida para assentar Gil e Luan. Ela foi colocada em frente à porta da cozinha propositadamente deixada semiaberta, como se alguém tivesse acabado de passar por ali. Foram feitas duas entrevistas separadamente para que cada artista trouxesse sua contribuição ao vídeo, evitando que apenas um integrante falasse pela banda.
Enquanto o bate-papo desenrolava, todos foram surpreendidos pela participação mais que especial da Sol. Assim como na língua alemã, ela é substantivo feminino e escrito em caixa alta. E aqui no casarão, é um corpo celeste que irradia tons alvinegros.
A mascote do projeto e companheira de Paulo levantou de sua cama sob a mesa da cozinha em dúvida se poderia de fato atravessar aquele monte de perna de gente, de tripé e de cadeira. Parou. Olhou para o entrevistador, olhou para o entrevistado. Embora os olhos negros transmitissem medo e curiosidade e as quatro patas hesitassem, a barba branca a encheu de coragem, fazendo com que Sol trouxesse a espontaneidade do Casarão para as entrevistas.
Outro toque especial foi a melodia das falas de Gil e Luan, que enriqueceram a conversa com o delicioso sotaque mossoroense. E apesar da diferença com o jeito paulistano de falar, não tinha como não se sentir próximo deles cada vez que iniciavam uma resposta com “tipo” e encerravam outra com o familiar “tá ligado?”.
Gil e Luan começaram a criar o repertório do Red Boots em 2005. Chegaram a gravar demos e EPs, mas foi depois de caírem nas graças do produtor Anderson Foca, proprietário do Centro Cultural Dosol, que lançaram o primeiro disco “Aracnophilia”, em 2012, pelo Projeto Incubadora.
Com o trabalho em mãos, os caras decidiram viver a música de forma visceral. Largaram os respectivos empregos em Mossoró e caíram na estrada em meados de fevereiro deste ano com uma turnê sem data para acabar. Isso porque, o plano era fazer contato em cada apresentação e ir para aonde fossem convidados a tocar.
Ao longo de 56 dias, o resultado foi uma viagem pelos estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Minas Gerais, Goiás e São Paulo, totalizando 13 shows e outras atividades musicais, como a participação no Ao Vivo no Casarão. Os novos contatos também articularam uma possível ida à Argentina e outra aos Estados Unidos. Porém, antes disso, eles garantem que em breve vão se apresentar pela região Norte do Brasil. Vale ficar de olho na agenda para não perder.
A combustão!
Para as três músicas gravadas, o áudio foi captado em oito canais: um para a voz, outro para o baixo, um guitarra e outro para o som do casarão, cujos microfones foram montados para captar a reverberação na parede e no teto. Os outros canais foram distribuídos na bateria, sendo um para a caixa, um no bumbo e dois over, dando a sensação de escutar o instrumento por inteiro.
Pouco antes de iniciar a gravação da primeira música, um dos pratos da bateria rachou. O imprevisto, no entanto, não prejudicou em nada o peso do som. Afinal, o baixo e magro Gil se transforma quando está no comando da bateria. Com as baquetas em punho, o rapaz de 23 anos se fortalece e cresce de forma extraordinária.
Outra transformação que surpreende é a da guitarra de Luan. Além de disfarçar os jovens 22 anos com a barba, o músico conecta um amplificador de guitarra junto com um de baixo o que traz ainda mais densidade e peso ao som do Red Boots.
A primeira canção tocada foi “The Last”, considerada a mais pesada do repertório do dia. Para a captação, as quatro Canon ficaram nas mãos dos câmeras, o que possibilitou criações como o zoom-in e zoom-out de maneira acelerada, e o travelling de foco na escada e na contraluz. Após o único take, a equipe foi tomada pelo êxtase: “Ficou fantástico! Lembra o clipe de ‘Smells Like Teen Spirit’! É a realização de um sonho”.
A vontade era de engolir o som. Devorá-lo. Não como em uma degustação de um aperitivo, mas sim como um visigodo que come a coxa de um javali com as mãos. Todos estavam contaminados e o envolvimento era indiscutível: seja pelos pés chacoalhando numa tentativa de tocar bateria junto com Gil seja pelo balanço da cabeça que ia e vinha no ritmo dos riffs de Luan.
Para a segunda música “Falling Tree”, a proposta foi reduzir a atividade das câmeras, colocando uma no tripé e outra em um monopé. Já a GoPro que estava no tapete, subiu para o teto.
Poucos instantes antes do “Vai som!”, o botão da máquina de fumaça emperrou e o hall foi preenchido pela fumaça branca do Vaticano que impedia a apresentação underground do som do capeta. Dissipado o excessivo clima sombrio do apocalipse, o rec pode ser acionado, totalizando dois takes.
A última canção do repertório, por sua vez, levou cerca de quatro takes para ser captada por completo. Afinal, a “Destroyer” é uma música nova, que nem consta no disco do Red Boots, e os próprios artistas estavam se reconhecendo no som, acertando os últimos detalhes, como o da passagem para o refrão. Nesse caso, as quatro câmeras ficaram fixas em tripés, para que o vídeo fosse mais trabalhado na edição.
Com a adrenalina ainda pulsando, o corpo agitado até a ponta dos dedos e uma vontade de gritar de satisfação, a diária acabou muito antes do previsto pela produção.
Se a diretora soubesse disso, talvez tivesse relaxado desde o começo e curtido a performance involuntária de Paulo Goya. Trajando camiseta lisa, calça de moletom e papete, o ator professava durante a preparação do café: “Bosta! Bosta! Bosta!”, com um “o” arrastado e um “a” seco, dentro de sua cozinha fechada pelo portão de metal.
THE RED BOOTS Luan Rodrigues (vocal e guitarra) Gilderlan Holanda (bateria)
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